Lembro-me de em miúdo estar sentado à lareira com a senhora minha avó, comendo scones e bebericando Mariage Frères Jasmine Chung Feng (benfiquistas escusam de ir ao Google: é chá) fervido não mais de 30 segundos, enquanto discutíamos a nossa espiritualidade e eventual religiosidade. A minha avó era fortemente católica, praticante temente a Deus, que desde sempre me tentou juntar ao rebanho. Com grande pena dela, assim que a testosterona começou a circular nas minhas veias rapidamente se apercebeu que eu estava mais para lobo do que para cordeiro.
Dizia-me ela que eu era demasiado novo para perceber o papel determinante do Divino na minha pecaminosa existência. E jurava pela Nossa Senhora da Conceição que um dia eu ainda haveria de rogar ao Senhor por algo mais do que o roliço traseiro da Nela, filha da porteira do prédio do João Rui.
"Infelizmente, meu filho, só te vais lembrar de Deus no dia em que verdadeiramente precisares d'Ele. Só espero que não seja tarde."Depois, fechávamos os olhos. Ela rezava uma Avé Maria e eu rezava para que os pais da Maria do 4º esquerdo nunca viessem mais cedo do trabalho.
Os anos passaram. A minha avó juntou-se ao criador e eu comprei um lugar por vinte anos no Estádio de Alvalade. Continuei a ignorar a minha espiritualidade e a renegar qualquer divindade para além da santíssima trindade Acosta, Jardel e Liedson. E a profecia da sábia geronte cumpriu-se.
Acabaram-se os milagres de São Liedson e esgotaram-se as aparições de auto-golos no último minuto. O povo sportinguista faz agora a sua travessia do deserto, às mãos do implacavel Bento que teima em lavar as mãos de qualquer responsabilidade, condenando-nos ao inferno que é assistir aquele futebol. E eu, desesperado, não encontrei outra saída senão apelar a Deus.
No estado em que a coisa se apresenta já nem uma ida a Fátima resolvia. Assim sendo fiz-me à estrada e apontei a Santiago de Compostela, a Liga dos Campeões da fé ibérica. Aí chegando, tomei conhecimento da tradição praticada pela população estudantil ao longo dos séculos. Segundo eles, quem for à Catedral e der uma ligeira cabeçada na base da imagem de Santiago terá protecção garantida para o ano lectivo.
Ninguém me soube dizer se a protecção se aplicava a uma época futebolística, mas não hesitei: entrei Catedral adentro, saltei com quantas forças tinha e cabeceei os pés do santo de cima para baixo como mandam as regras.
Apresento-me neste momento com dez pontos (de atraso) na testa, pespegado em frente à TV, esperando a aparição de Bettencourt a anunciar o milagre: Bento vai embora.
E como dizia a senhora minha avó
"Só espero que não seja tarde".