Foi numa manhã tormentosa, fustigada pela chuva intensa e vento inclemente, que saiu da barra do Tejo a nau comandada por Dom Luiz Fillipe de Vieira, abastado comerciante da região de Lisboa que fizera fortuna com o comércio de rodados para carroças e juntas de bois. Corriam também boatos que juntamente com essa mercadoria se transacionava outra sorte de produtos menos lícitos, porque do comércio de rodas nunca ninguém ganhara tão grande prosperidade. Mas adiante. Embarcados nessa nau estavam os mais consagrados rufias da metrópole, levada a golpe de chicote pelo comandante Ruy Costa, que nos dias de bom humor lançava aquela vara de cadastrados um coirato ressequido, provavelmente sobrado de uma qualquer festa popular ou espectáculo circence nas vésperas da abalação. Depois ficava ali a ver a canalha, corroída pelo escorbuto e peste vermelha, a degladiar-se por aquele naco bolorento.
Era desígnio de Dom Luiz Fillipe de Vieira assomar a terras de Vera Cruz com o propósito de negociar a mercadoria local. Já se sabia naqueles tempos que no Brazil se encontravam trabalhadores talentosos, que os autóctones facilmente transaccionavam por colares de contas.
O narrador toma agora a liberdade de poupar o inocente leitor à descrição pormenorizada da viagem de tais gentes, deixando à imaginação de cada um os hediondos rituais e práticas contra-natura que dentro da carraca se praticaram.
E foi numa manhã solarenga que o comandante Ruy Costa anunciou ao que sobrava da tripulação (alguns sucumbiram à peste vermelha, outros - como o marujo Keirrison - foram simplesmente deitados aos tubarões) o avistamento de terra. Chegados estavam à baía de Santos. Os locais reagiram com desconfiança à chegada de tão fedorenta comitiva, mas aceitaram negociar. Dom Luiz Fillipe de Vieira logo se apressou a embarcar mais uma arroba de indígenas.
No final, fingindo gratidão (pois carecia de se livrar de algum lastro) deu ordens ao seu capitão Ruy Costa que fizesse oferta de qualquer insignificância à tribo que os recebera.
"E que lhes oferecemos, meu Almirante? Os colares de contas do costume?", perguntou Ruy
"Nada de desperdiçar colares de contas que ainda temos que ir à Argentina. Temos por aí pior mercadoria", grunhiu Dom Luiz Fillipe
"Ah! O barril de carne putrefacta!", deduziu o inocente Ruy
"Nem pensar! O imediato Barbas e o grumete Jesus não dispensam tal petisco", afiançou Dom Luiz Fillipe
"Então o quê? Aquilo!?", perguntou Ruy abismado, antecipar já a indignação dos indígenas.
"Sim, aquilo. Eles gostam. MUHAHAHAHAHA!"