É com redobradas energias que retomo o contacto convosco, caros sócios e simpatizantes do Impróprio para Cardíacos, depois de duas semanas de viagem que me levaram de Lisboa até à Guiné-Bissau por estrada.
Tudo começou na semana anterior ao Natal, na secção de lingerie do El Corte Inglés (assim vão conhecendo pouco a pouco este vosso interlocutor, nomeadamente a sua fantasia com roupa interior - cor de carne - para septuagenárias), quando um telefonema me dá conta que A. se preparava para conduzir uma camioneta das obras até à Guiné, pois recusava submeter-se ao martírio burocrático que seria enviá-la num contentor. Tão rápido a decidir como o Levezinho na cara do golo, colei-me à boleia: oportunidades destas surgem uma vez na vida, um pouco como as decisões acertadas de Paulo Baptista.
Vou poupá-los aos tormentos inerentes a cinco mil quilómetros por Marrocos, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau, aos buracos, às avarias, às doenças e tentar-me-ei cingir ao tema deste blog, o futebol.
Para além da banalidade que é, onde quer que vá, ver Portugal associado a figuras do universo Sportinguista (
Portugal? Cristiano Ronaldo! Figo! Pedro Silva! Tiuí!), destaco a quantidade de gente envergando camisolas do FCP no Senegal, corroborando as estatísticas da UNESCO que apontam este país como um dos mais corruptos do mundo.
Na Mauritânia nada a assinalar. Trata-se de país maior que a Península Ibérica, areia de uma ponta à outra, com uma estrada, duas cidades e onde ainda se registam casos de escravatura. Creio que o futebol ainda não chegou aqui e que o desporto nacional continua a ser o arremesso de túbaros de camelo.
Já na Guiné-Bissau a coisa muda radicalmente de figura. O povo vibra com o futebol português, sabe o nome de cada um dos jogadores de cada um dos planteis da I Liga, sabe quantos ataques pelo flanco direito levou a cabo o Trofense contra a Naval e sabe que a Águia Vitória sabe mais de bola que o Quique Flores. Creio que a crise de assistências nos estádios nacionais pode passar pela transferência das partidas para Bissau, Bafatá ou Bolama: as bancadas estariam cheias e árbitros ladrões (não é inocente o recurso ao pleonasmo) seriam sumariamente punidos com um tiro na têmporas, com a conta da bala a ser enviada para casa da família do larápio.
Facto a registar: pela contagem de camisolas nas ruas (método científico já utilizado pelo Record e por A Bola em estaleiros das obras para contabilizar os 234 milhões de benfiquistas) os adeptos guineenses dividem-se em: 90% do Sporting, 7% do Manchester United, 2% do Inter e 1% do Rui Costa. Com esta indubitável prova da inteligência do povo guineense, a responsabilidade do país estar entre os dois mais pobres do mundo (em disputada competição com o Haiti) recai inteiramente sobre os governantes. Ou não fosse o presidente Nino ter como apelido…Vieira, e ser adepto do…do…do Benfica, pois claro.
Mas, para além do futebol e das suas infinitas belezas e encantos, África é também feita de dramas. Como aquele que me chegou aos ouvidos e que relatava a forma brutal e desumana como a população de uma recôndita tabanca (povoação) ostracisava e maltratava uma das suas crianças. Terá alguma malformação física?, interroguei-me. Ou lepra? Ou um olho no meio da testa? Será que – ahhh, pecado contra-natura! – tem um poster do Calado na parede de adobe da sua cabana?
Movido pela curiosidade e por aquela indomitável vontade que os ocidentais têm de resolver todos os problemas do terceiro mundo, pedi que me conduzissem até junto do pobre infeliz. Quatro horas de infernal e poeirenta picada depois, lá cheguei à tabanca de Nhane, perto de Nhacre, onde nasce o rio Nhongue.
Não demorei muito até encontrar o desgraçado. Estava na copa de um embondeiro, acossado e assustado. Cá em baixo, os outros miúdos atiravam-lhe pedras, os cães sarnentos esperavam que ele finalmente caísse e lá em cima, os abutres agoirentos voavam em círculos aguardando a sua vez. Afugentei toda aquela sinistra multidão e fiz baixar o petiz. Os meus olhos brilharam de emoção quando vi que envergava uma camisola do Sporting. Até lhe perdoei a ignorância do chinês contrafactor que imprimiu as riscas ao alto (!?). Mas subitamente, espantado pelo piar agudo de um corvo que passou perto, o miúdo virou-se, mostrando-me pela primeira vez as costas do equipamento. Atónito, pontapeei violentamente a criança, fazendo-a subir num ápice de volta para a copa da árvore. Chamei o resto da criançada, os cães sarnentos e ali estivemos até ao anoitecer a atirar pedras e cocos ao infeliz.
Decerto compreenderão esta minha atitude.